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Mãe assina certidão de óbito de filha viva e menina se torna ‘invisível’ para o Estado

27/07/2018 - 18h11

Mãe e filha no Conselho Tutelar

Sara*, 11 anos, sabe de cor os nomes dos remédios que precisa tomar quando fica gripada. Se a virose vier acompanhada de febre, a menina também sabe o que fazer. “Me jogo no chuveiro rápido para não dar tempo da convulsão chegar”, conta. Por precaução, ela coloca os remédios de alergia ao lado na cama onde dorme com mais duas irmãs, em uma casa simples na cidade de Candeias, Região Metropolitana de Salvador.

Mas, por que Sara, aos 11 anos, dá uma de médica? Simples. Ela não pode ser atendida por um. Não pode ir ao médico, não pode matricular-se em uma escola, não pode receber benefício do governo. Sara é de carne e osso, mas se tornou “invisível” para o Estado. Está oficialmente morta desde 2009, quando seu tio, não identificado pela reportagem do CORREIO, usou o documento para fazer a certidão de óbito da própria filha, de mesma idade e com nome semelhante. A mãe, por sua vez, assinou o documento que atestava a morte da filha.

Com a certidão de nascimento inválida, Sara não tem sequer um registro de identidade e, por isso, não consegue ter acesso a direitos básicos, como educação, saúde, moradia, além de programas sociais. Como ela, havia em 2015 mais de 92 mil pessoas na Bahia sem registro. Agora, Sara precisa fazer uma cirurgia nos olhos, mas está impedida.

“Eu nunca vou para o médico porque eles não aceitam o documento que eu tenho, então, tomo todos os remédios em casa mesmo”, afirma Sara.

A mãe de Sara, Juliana*, diz que a confusão com os documentos afeta diariamente a vida da filha. “Quando vamos fazer alguma coisa que precisa de documento, já ficamos tristes porque a gente sabe que não vai conseguir. Ela só estuda porque eu dei um jeito de matricular, mas eu nem sei se os estudos dela vão valer”, conta a mãe, que contou com a sensibilidade da diretora de uma escola municipal para que a filha pudesse seguir com os estudos.

Na tarde de segunda-feira (16), a mãe da menina resolveu procurar o Conselho Tutelar, na Boca do Rio, para pedir ajuda. Segundo Juliana, a cirurgia de Sara precisa ser feita com urgência. “Se minha filha não fizer essa cirurgia, ela pode ficar cega. Dessa vez, não tem como dar jeito em casa, não. Ela precisa ser internada e fazer um cartão do SUS”, declara.

A certidão de nascimento de Sara não é válida

Do nascimento à ‘morte’ 

Sara nasceu no dia 17 de março de 2007, mais precisamente, às 18h24, em Candeias. Juliana ainda lembra do dia com precisão. “Uma mulher jamais esquece a alegria de ter um filho. Eu tinha 15 anos época e ainda consigo lembrar de quando tive a dor para ter ela. Nasceu linda, como as irmãs”, emociona-se.

Pouco tempo depois, Juliana se muda para Camaçari, também na Região Metropolitana. Sara, então, era apenas uma bebê de um ano e meio. As duas estavam prontas para começar uma nova vida, na casa do tio, o qual chamaremos de Vanderson*. É quando começa a confusão na vida de mãe e filha.

Juliana relata que quando uma das filhas de Vanderson, que não era registrada, passou mal, seu tio pegou a certidão de nascimento de Sara para dar entrada no hospital.  “Essa história começou porque meu tio teve uma filha e não registrou a criança, que tinha a mesma idade da minha menina. Então, quando a minha prima começou a passar mal, ele pegou a certidão de nascimento de Sara para conseguir entrar com ela no hospital ”, conta Juliana.

Na mesma noite em que o tio de Juliana chegou ao hospital, a bebê não registrada morreu. A mentira, então, é levada adiante: a menina é enterrada com a certidão de nascimento de Sara. A certidão de óbito também leva o nome de Sara.

“Quando a filha do meu tio morreu, ele me pediu para assinar um documento no hospital. Esse documento era a certidão de óbito, que tinha o nome da minha filha. Eu fui lá e assinei, sem saber. Eu era menor de idade e estava na casa dele na época”, relembra a mãe de Sara.

Juliana só se deu conta do problema quando precisou levar a filha no médico. Ela diz que os locais passaram a não aceitar a certidão de nascimento na menina. “Minha filha teve várias crises de convulsão e não tive como levar ela no hospital, porque ninguém aceitava o documento que eu tinha”, conta.

A conselheira Andreia está à frente do caso

Da invisibilidade à vulnerabilidade

Hoje, Sara vive com mais três irmãos e a mãe em Candeias. Juliana não trabalha e vive com a renda que ganha no Bolsa Família. “Eu sei que eu poderia ter corrido atrás antes, mas tive outros problemas que me impediram e, além disso, preciso dar conta de criar meus outros filhos, que também precisam de mim”, lamenta.

Mãe e filha chegaram em Salvador na manhã da segunda e ficaram até a quarta-feira (18). Sem ter onde ficar, elas passaram as noites em abrigos da capital baiana. Para a conselheira tutelar responsável pelo caso, Andreia Borges, as duas estão em situação de vulnerabilidade. “A criança está com todos os direitos velados. Ela não existe perante a lei. Ela não tem direito à saúde e à educação. E o pior de tudo é que a menina tem consciência de tudo isso. Ela sabe e sofre”, afirma. Agora, a  prioridade do Conselho Tutelar é regularizar o estado civil da criança.

“Depois disso, vamos ver todos os outros direitos dela. Vamos tentar reconstruir a vida dessa menina, porque é como se ela não existisse”, completa Andreia.

A conselheira diz que deve entrar com uma ação no Ministério Publico do Estado da Bahia (MP-BA) para pedir a anulação do registro da menina. “Vamos cuidar disso pra manter o nome dela, porque já tem 11 anos que a menina é chamada assim. Ela não pode mudar de nome de uma hora para outra”, diz. Em seguida, Andreia diz que é necessário tomar uma iniciativa para cuidar do problema de saúde da criança.

Na segunda-feira, mãe e filha foram prestar depoimento no Conselho Tutelar e na Delegacia de Repressão a Crimes Contra a Criança e o Adolescente  (Derca). O CORREIO não obteve resposta da delegada titular da unidade, Ana Críscia, até fechamento desta reportagem. A conselheira define o caso como “curioso e raro”. Ela afirma que nunca viu uma situação dessas. “Quando peguei o caso, fiquei tão supresa que fui consultar outros colegas e ninguém também tinha visto”, conta.

Foi a mesma sensação da promotora Susi Cerqueira, do Centro de Apoio às Promotorias Cíveis do Ministério Público, também procurada pelo CORREIO.  A promotora afirma que, no caso de Sara, vai ser preciso percorrer um longo caminho até que se prove a validade de sua certidão de nascimento e o próprio óbito de sua prima.

“O correto a fazer é, a partir dos nomes das mães, pegar as duas declarações de nascimento nas maternidades em que elas nasceram, tanto da menina que morreu quanto da que está viva. Depois, a partir dessa declaração, é preciso entrar com uma ação para excluir os dados do óbito da menina que está viva. Em seguida, faz-se o registro de nascimento da que faleceu para, aí sim, fazer seu registro de óbito”, diz a promotora.

Crime contra a fé pública
Para a professora de direito penal da Faculdade Baiana de Direito, Mayana Sales, a ação do tio de Juliana configura um crime contra a fé pública. Segundo Mayana, o ato corresponde a uma falsidade ideológica. “Ele fez inserir em um documento público, na certidão de óbito, uma informação que não é verdadeira. Para mim, essa situação é um crime contra a fé pública. Ele altera fatos juridicamente relevantes “, afirma a professora.

Mayana diz ainda que a mãe de Sara não responderia por ter assinado a certidão de óbito da filha viva, já que na época Juliana era menor de idade. “Mesmo que a mãe soubesse, ela praticaria uma ato infracional e não um crime”, afirma.

‘Invisíveis sociais’: 92 mil pessoas não tinham registro na Bahia em 2015
Por uma irresponsabilidade do tio, Sara se tornou uima invisível social. Mas, há muitas pessoas que sequer chegam a ser registradas. Elas fazem parte de um grupo de 9.743 pessoas de 3 anos ou mais de idade na Região Metropolitana de Salvador e de 92.818 pessoas em toda a Bahia, que, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) realizada pelo IBGE em 2015, afirmaram nunca ter tirado a certidão de nascimento. De lá para cá, segundo o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), 8.957 pessoas com mais de 3 anos foram registradas na Bahia.

Nenhuma delas pode matricular-se em uma escola, internar-se num hospital, abrir conta corrente em banco ou participar de programas sociais do governo. Nenhuma delas consegue obter créditos de financiamento ou adquirir uma casa própria. Nenhuma delas pode votar ou ser votada. Nasceram, mas ainda estão longe de conquistar a cidadania. São “invisíveis sociais”.

Não adianta procurá-los em listas telefônicas, no Cadastro de Pessoa Física (CPF) do Ministério da Fazenda ou até mesmo na relação dos beneficiados pelo abono salarial PIS/Pasep. Seus nomes não estão em lugar nenhum. Além de não terem a certidão de nascimento, pessoas como essas não têm nenhum outro documento. “O registro é o documento que lhe dá a oportunidade de ser cidadão e ter acesso a direitos básicos”, explica a promotora Susi Cerqueira, do Centro de Apoio às Promotorias Cíveis do Ministério Público.

A falta do registro acarreta diversos problemas ao longo da vida. Inclusive no final dela, observa o Subdefensor Público Geral na Bahia, Rafson Ximenes. Quanto mais tarde é feito o registro, acredita Rafson, pior. “Há casos, principalmente no interior, que quando a família vai registrar o filho, já com seu dez ou 15 anos, sequer se lembra exatamente a data do nascimento, sequer se lembra da idade e até do nome. Às vezes a pessoa só vai perceber a consequência disso quando vai se aposentar e tem uma diferença de quatro, cinco, seis anos do que consta na certidão de nascimento e a idade real”, afirma o defensor.

“Presenciamos um caso em que duas pessoas tinham a mesma certidão de nascimento. Não eram certidões com o mesmo nome. Elas tinha exatamente a mesma certidão. Era o mesmo número. Uma usou o documento da outra durante um bom tempo. Só foram perceber adultas, quando uma delas não conseguiu receber o Bolsa Família”, narra Ximenes, que se recorda também de um caso semelhante ao de Sara. “Tivemos o caso recente de uma  senhora que era dada como morta. Fizeram a certidão de óbito dela por algum motivo”.

Para o defensor, o Estado deveria ter o papel de identificar esses casos. “É preciso fazer um trabalho social, educacional mesmo. Mas o Estado também tem por dever identificar esse tipo de situação quando aparece para ele. Uma criança que vai ser atendida em um hospital e não tem certidão, isso tem que ser constatado. A mesma coisa se for se matricular”.

Quem não tem certidão de nascimento não pode ‘morrer’
No caso de Sara, ela busca provar que ainda está viva, apesar de sua mãe ter assinado sua certidão de óbito. Mas, há casos de pessoas que morrem e precisam provar que um dia viveram. Na verdade, mesmo mortas, precisam “nascer” antes. Tudo porque elas nunca tiveram uma certidão de nascimento. E quem não tem certidão de nascimento, não pode “morrer”. Somente este ano, cinco casos desses tiveram que ser solucionados pelo Centro de Apoio às Promotorias Cíveis do Ministério Público.

O caminho que as famílias dos falecidos precisam percorrer é tão penoso quanto o de Sara. Primeiro, o MP expede ofícios para todos os cartórios de registro civil. Se todos eles apresentarem certidões negativas que confirmem o não nascimento da pessoa,  o órgão então ingressa com uma ação judicial de abertura de registro de nascimento. “Como há uma pessoa que precisa ser sepultada, a Justiça costuma dar prioridade a esses casos”, explica a promotora Susi Cerqueira.

Com a sentença em mãos, a família ainda precisa ir em um cartório de registro civil para fazer a certidão de nascimento do falecido. Somente com a certidão, o Instituto Médico Legal (IML) pode preencher a declaração de óbito. “São casos muito delicados. A família já tem que lidar com a dor da perda e ainda tem que enfrentar tudo isso. É aí que você vê a importância do registro”, diz a promotora.

Projeto ‘Sou Gente de Verdade’ incentiva registros
Desde 2017, o Ministério Público reativou um projeto que tenta localizar pessoas que não têm registro. O Sou Gente de Verdade encontra muitas dificuldades em encontrar esses “invisíveis”. O perfil das pessoas que não têm registro é quase sempre o mesmo. São de baixa renda e residem principalmente em regiões afastadas do centro da cidade e em pequenas comunidades rurais. Por isso, se você não tem certidão de nascimento ou conhece alguém nessa situação, conheça o passo a passo para se tornar “gente de verdade”.

1 – Onde ir? 
Para oficializar o registro de nascimento, o interessado deve procurar o MP com algum documento que comprove o dia e o local do seu nascimento.

2 – Documentos
São válidos o batistério (documento de batismo) ou registro de nascido vivo (expedido pela maternidade). Se não tiver, deve comparecer com os pais. Caso tenham morrido, pode apresentar testemunhas.

3 – Rastreamento 
O promotor solicita rastreamento na Seção de Registro de Nascimento, que centraliza informações de todos os cartórios de registro da capital e no Instituto de Identificação Pedro Melo.

4- Ação Judicial 
Se a busca for negativa, o MP propõe a ação de abertura de registro de nascimento.

5 – Espera
Em três meses, a Justiça deve se manifestar.

6 – Fim do processo
A juíza da Vara de Registros Públicos profere a sentença. O cidadão vai ao cartório onde formaliza o registro civil.

Fonte: Correio


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