Sujas de lama, imagens sacras reaparecem após tragédia de Mariana
Nos vilarejos de Minas, igrejas agregam não só a fé, mas o espírito das comunidades. Locais de identidade coletiva, os templos destruídos de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira ainda buscam seus pedaços perdidos na lama. Cerca de 1.900 deles estão na reserva técnica da Fundação Renova, em Mariana, em restauração.
Após dois anos, a lama ainda devolve, vez por outra, o que sepultou. Reza a tradição católica que a jovem Santa Gemma (1878-1903, Itália) se ofereceu em martírio para salvar as almas. Pouco conhecida no Brasil, Santa Gemma, mística que dizia enfrentar o demônio, recebia devoção na Capela de Nossa Senhora da Conceição, na devastada Gesteira, em Barra Longa. E foi a cabeça de sua estátua uma das peças que mais impressionaram os arqueólogos que trabalham na restauração. A lama ocultou o cabelo e dificultou a identificação da santa, cujos olhos de vidro nunca deixaram de brilhar.
— Esta não é uma santa comum no país. Muito austera, quase parece um homem. Não sabemos sequer como sua imagem foi parar em Gesteira. Também de Gesteira vem Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, de ainda luminosos olhos azuis — explica Mara Fantini, da Renova, especialista em restauração de obras sacras e preservação do patrimônio cultural material e imaterial.
CRISTO DO SÉCULO XVIII E TAMPA DE PIA BATISMAL
Técnicos da Renova vasculham o rejeito em busca de fragmentos. Peças também chegam trazidas da beira dos rios Gualaxo do Norte e Carmo por moradores.
— Não resgatamos e restauramos só objetos sacros, mas tudo o que estava nas igrejas no dia do desastre. São testemunhos dos últimos momentos. Numa cultura em que fé e identidade se misturam, eles têm muito a revelar — frisa Mara.
Dividem as prateleiras com os santos sacos de bala e moedas, trazidos da capela de Santo Antônio, em Paracatu de Baixo.
— Emocionou encontrar uma garrafa plástica ainda com a última remessa de água benta enviada a Paracatu, dois dias antes do desastre — acrescenta Mara.
Ela destaca um Cristo crucificado do século XVIII, considerado uma raridade pelos detalhes rigorosos de músculos e ossos, além de proporções exatas. O Cristo veio de Bento Rodrigues. Da capela de São Bento, do século XVIII, restou pouco mais que o piso e uma mureta do que era a parede da entrada. Hoje, o que sobrou da capela está encapsulado em plástico, à beira das águas do dique S4, criado para conter o rejeito. Muito maior que o Cristo é a tampa da pia batismal, encontrada inteira. Assim como os retábulos de madeira do altar que já não existe.
As capelas de Paracatu e de Gesteira resistiram à lama. Ainda com as marcas do rejeito, a de Santo Antônio abre em ocasiões especiais. Porém, o destino dos santos e demais objetos é incerto:
— Os objetos sacros pertencem oficialmente à Igreja e de fato às comunidades. Caberá a todos decidirem — diz Mara.
Segundo ela, nenhuma das peças precisará de cuidados especiais após serem devolvidas às comunidades. Entre as imagens nunca encontradas está a de São Bento a quem era dedicada a arrasada capela homônima.
— Pessoas de Bento Rodrigues dizem que São Bento se foi na lama para salvá-las — conta Mara.
A museóloga e técnica em restauração Lucimar Muniz conhece como poucos o patrimônio arrasado. Sua família é de Bento e desde a tragédia ela tem se mobilizado. Ela diz que encontrar o sino da igreja seria emblemático. O sino badalava ao ser arrastado pela onda de rejeito. Segundo Lucimar, semanas depois do desastre, o sino chegou a ser avistado na beira do Gualaxo, das imediações de uma fazenda. Mas de pois sumiu, conta:
— Ele é de bronze. Pode ser que ainda o encontremos. É um patrimônio carregado de simbolismo para os atingidos. Todos esses objetos nunca voltarão a ser como eram. Terão marcas da tragédia. O dano faz parte da História.
Fonte: OGlobo