Médicos e policiais faturavam R$ 2 milhões por mês com abortos
O retrato de uma indústria criminosa e cruel: a indústria do aborto. Durante 15 meses, a Polícia Civil do Rio de Janeiro investigou uma rede de médicos, policiais e militares que faturava até R$ 2 milhões por mês às custas do sofrimento de milhares de mulheres. É o que mostram os repórteres Tyndaro Menezes e Carlos de Lannoy.
“Ô, senhor, se o senhor não abrir, eu vou ter que arrombar”, diz o delegado.
Rio de Janeiro, terça-feira passada. Quase 500 policiais fazem a maior operação já realizada no país contra clínicas clandestinas de aborto. No cofre de um dos médicos acusados, o doutor Aloísio Soares Guimarães, de 88 anos, uma surpresa.
Delegado: Ah, aqui que está o dinheiro. Aqui ó, quanto tem aqui, seu Aloísio?
Aloísio Soares Guimarães: Não sei
Delegado: Tudo em notas de US$ 100.
Os policiais contaram: US$ 190 mil, cerca de R$ 500 milhões. E extratos de uma conta na Suíça, com mais R$ 5 milhões.
Policial: O senhor já respondeu por crime de aborto?
Aloísio: Já, mas não deu nada. Eu sou ginecologista. Chegou uma mulher perdendo sangue, eu tenho que atender.
Aloísio é um dos dez médicos que tiveram prisão preventiva decretada por participação em um esquema milionário: a máfia do aborto. Ao todo, foram 75 denunciados no Rio, em São Paulo e no Espírito Santo. Foram 118 mandados de busca e apreensão.
No apartamento de Aloísio, no Leblon, um dos metros quadrados mais caros do Brasil, os policiais encontraram máquinas de sucção que eram usadas para interromper a gravidez.
O doutor Aloísio tem várias passagens na polícia. A primeira delas em 1962, há mais de 50 anos. Segundo a investigação, doutor Aloísio era o chefe do núcleo da quadrilha, em Copacabana.
Fantástico: Doutor Aloísio, o que o senhor tem a dizer sobre essa situação? Há quanto tempo o senhor vinha realizando aborto?
Aloísio já respondeu a cinco processos. Nunca foi condenado. Mas agora a polícia e o Ministério Público dizem ter reunido provas contundentes do envolvimento dele e dos demais acusados.
Em uma conversa gravada com autorização da Justiça, o médico revela ao neto quanto ganhava com os abortos e que pagava propina a policiais.
Doutor Aloisio: Eu acho que no máximo 20 mil eu dou.
Homem: Entendi.
Doutor Aloisio: Porque 20 mil para mim é nada.
Homem: Em dois dias você já matou…
Doutor Aloisio: Dois dias, menos de dois dias até. É muita fortuna que eu ganho.
Homem: É, tem que pensar assim né, vô…
Doutor Aloisio: Em maio eu ganhei 300 mil.
Em um ano e três meses de investigação, os policiais descobriram que os acusados montaram uma organização criminosa, formada por sete núcleos. Cada núcleo operava em uma região da cidade e tinha médicos, auxiliares de enfermagem, atendentes, motoristas, seguranças e agenciadores. A investigação mostrou que uma das médicas acusadas chegava a fazer 50 abortos por dia.
A engrenagem não parava. Quando uma clínica era fechada, seguranças encaminhavam pacientes para outros endereços.
Policial: Boa tarde. Está fechado ali, moço?
Agenciador: É o mesmo pessoal daqui, mas está em outro lugar.
Policial: Está, mas é seguro.
Agenciador: É o mesmo pessoal. O que acontece: aqui está fechado vai fazer dois anos, entendeu? Então monta em um lugar hoje, amanhã monta em outro lugar. Porque sabe como é que é, né? O negócio está, está difícil.
“Esses núcleos, longe de serem concorrentes, eles eram complementares e atuavam em um sistema de parceria. Na medida em que um núcleo, quando era desmantelado pela polícia, seus integrantes remanescentes, eles repassavam as gestantes que os procuravam para as outras clínicas de aborto em funcionamento mediante o pagamento de comissões”, afirma Felipe Bitencourt do Vale, delegado da Corregedoria Polícia Civil do Rio.
O aborto no Brasil se transformou em uma indústria. São mais de 850 mil casos por ano. Como o de Jandira Cruz, de 27 anos, que acabou morta em agosto. Ela estava grávida de 4 meses.
Rosemere Aparecida Ferreira é uma das responsáveis pela clínica de Campo Grande, Zona Oeste carioca, onde um falso médico fez o aborto em Jandira. Em uma gravação, Rosemere, que já havia sido presa pelo envolvimento em outros abortos, debocha da Justiça e diz que pagou para ser solta. “Só fica na cadeia quem é f***, Entendeu? Quem tem dinheiro não fica na cadeia, não. Eu paguei para mim sair”.
Rosemere também admite que realizava os abortos. “Eu estava presa mesmo. Sabe por quê? Porque eu faço aborto”.
A polícia fez um cerco aos criminosos presos esta semana. Foram mais 102 mil ligações monitoradas e 500 horas de gravações. Em outra conversa, duas agenciadoras negociam um aborto. A mulher está com mais de três meses de gravidez.
Mulher: É que tinha uma menina, mas ela está com 15 (semanas). Precisava fazer para ontem. Eu queria saber quanto está?
Mulher 2: R$ 3, 5 mil, Dri.
Mulher: Vou botar para R$ 4 mil então. Pelo menos ganho R$ 500 de cada uma.
Mulher 2: É, tu pede R$ 4,5 mil. Se elas ‘chiar’, você fecha por R$ 4 mil.
Quanto mais avançada a gestação, mais caro o serviço. Em outra gravação, uma jovem de 26 anos, grávida de seis meses e meio, liga para marcar o aborto.
Mulher 3: Oi.
Mulher 4: Oi. É a Vanessa que ligou para você mais cedo.
Mulher 3: Oi, Vanessa. É a paciente do Francisco?
Mulher 4: Da doutora, aquela menina que falou que estava com 6 meses.
Mulher 3: Ah está, está. Hein, eu falei com ela, ela me deu o valor de R$ 7,5 mil.
Mulher 4: R$ 7,5 mil?
Mulher 3: Já com 7 meses, né?
Mulher 4: Estou com 26 semanas. É 7 meses?
Mulher 3: É.
A atendente avisa: o pagamento tem que ser em dinheiro.
Mulher 4: E o dinheiro pago à vista aí na hora?
Mulher 3: É, paga aqui no local, na hora.
Mulher 4: Não pode ser cartão, nem cheque, só dinheiro, né?
Mulher 3: Só dinheiro.
O aborto é permitido por lei em casos de risco de morte para a mãe, estupro e quando o feto não tem cérebro.
Para o presidente da Associação de Ginecologia e Obstetrícia do Rio de Janeiro, Marcelo Burlá, as mulheres que fazem aborto ilegalmente não têm ideia do risco. “Tem situações mais graves, de se usar talos de mamona, agulhas de croché tentando perfurar um feto. Perfura o feto, perfura o útero e cai naquela situação de perfurar o intestino. O risco é inaceitável. São duas as principais complicações, as mais graves: hemorragia, quando se pega algum vaso nesse trajeto, e a paciente sangra. E a segunda complicação que mata é a infecção”, explica Burlá.
Outro flagrante: a dona de uma das clínicas clandestinas é uma Policial Civil: Sheila da Silva Pires.
Policial: Você é a proprietária da casa?
Sheila: Colega, sou eu, calma.
Policial: Como assim colega? Você é policial?
Sheila: Sou policial. Emprestei a casa para minha irmã.
Policial 2: Tudo bem, Sheila? Tudo bom com você?
Policial: Olha só, duas mulheres fazendo aborto na sua casa.
Pelo menos seis mulheres estão na casa. Duas delas são encontradas, ainda anestesiadas, na cama de Sheila, a policial.
“Ela percebendo que o mercado era extremamente lucrativo, ela acabou integrando essa própria quadrilha, essa própria organização criminosa, participando do agenciamento e de todas as atividades próprias dessa clínica de aborto”, afirma Adriana Pereira Mendes, corregedora de Polícia Civil do Rio.
Dos 58 presos na operação desta semana, 14 são agentes públicos: policiais civis e militares, um bombeiro e um sargento do Exército.
Em Guadalupe, na Zona Norte do Rio, os abortos eram feitos na casa do sargento André Luis da Silva, que morava em uma casa em um condomínio do Exército. Em depoimento, mulheres disseram que eram atendidas em péssimas condições de saúde. Uma delas contou que antes de fazer o aborto, o médico, que estava de chinelos, foi até a cozinha, abriu uma cerveja e começou a beber.
Em todas as clínicas foram encontrados medicamentos de uso controlado e anestésicos: muitos com prazo de validade vencido. A polícia suspeita que esses remédios eram desviados de hospitais públicos.
Nas clínicas, as seringas e os instrumentos usados nos abortos, como bisturis e pinças, ficavam todos misturados. Em uma, aparecem escondidos dentro da máquina de lavar roupas, totalmente sem higiene.
Em outra conversa, duas agenciadoras comentam que o médico Carlos Eduardo Souza Pinto, flagrado pela polícia fazendo um aborto, abandonou a paciente no meio da cirurgia.
Mulher 5: É, ele abriu a barriga da mulher e largou aberta lá.
Mulher 6: Largou a mulher e foi embora. E a policial foi e abordou ele.
Carlos Eduardo também foi preso esta semana. Ele morava em Cruzeiro, no interior de São Paulo, e ia para o Rio frequentemente para fazer os abortos.
Mulher 6: Pô, eu nunca vi. Ele para mim é um médico mesmo desnaturado.
Mulher 5: Ele é um açougueiro.
“Com certeza foi a maior operação contra a prática do crime de aborto, não há nenhuma dúvida. Isso vai ser feito agora um inquérito para tentar recuperar esses ativos, os veículos já foram apreendidos, o dinheiro que estava com eles também. Quebra de sigilo bancário, levantamento de contas. Todo esse dinheiro, haverá uma tentativa grande de recuperação”, destaca Homero de Freitas, promotor de Justiça.
A Rosemere, que você viu lá no começo da reportagem ironizando a Justiça, está presa desde o início de setembro. A quadrilha do aborto vai responder ainda por associação criminosa, tráfico de drogas, exercício ilegal da medicina e corrupção ativa e passiva. As pacientes que procuraram essas clínicas também serão responsabilizadas: 37 foram denunciadas pelo Ministério Público.
“Os médicos envolvidos nesse esquema, eles eram médicos apenas na sua formação, mas não na sua essência. Eles não salvavam vidas, eles não agiam por ideologia. Eles queriam apenas o dinheiro”, lamenta Felipe Bitencourt do Vale.
Fonte G1/Fantástico